19 abril, 2013

O PALHAÇO É UM CORAÇÃO LIGADO À AÇÃO (OU 4 RESPOSTAS PARA JOÃO LIMA*)

Tiziu Amori (João Lima) e Felícia de Castro / foto Eduardo Ravi

* O palhaço e grande amigo e irmão de caminho, João Lima, me fez essas quatro perguntas para sua pesquisa de monografia para Pós-Graduação em Ludicidade e Desenvolvimento Criativo de Pessoas. Resolvi publicá-las aqui porque são reflexões necessárias e que povoam as mentes-corações dos palhaços e palhaças... Aí vai, a quem interessar possa.


1 - Para você o que é o Estado de Palhaço? Como você o define?

O estado de palhaço para mim está ligado aos estados alterados da consciência. Normalmente, no dia a dia, usamos a consciência no "modo cotidiano", com eventuais alterações quando tomamos um grande susto ou temos uma onda de prazer/alegria muito intensa. Porém, o trabalho do artista cênico, lida, em maior ou menor grau, com a possibilidade e vasta capacidade do ser humano de configuração múltipla  da consciência. Então, esta outra configuração, diferente da cotidiana, instala um novo olhar e outros modos de sentir/perceber/agir.

2 - O que é preciso aprender ou que qualidades ou habilidades é preciso adquirir ou desenvolver para ser palhaço?

Poderia dizer mil coisas: técnica de gags, quedas, tapas, entradas, mímica, números clássicos, música, circo... mas tudo isso é depois. Antes de tudo, na minha percepção e vivência como palhaça e "parteira" de palhaços, vêm duas coisas sem as quais é impossível se desenvolver como palhaço: Utilizando uma terminologia/conceito do xamanismo, afirmo que uma habilidade importante é o desenvolvimento do 'outramento', a capacidade de desdobrar-se em outro, de encontrar outros seres dentro de si próprio, de ir fundo em nossas personas. Veja, bem, não falo de um personagem, de algo externo que montamos de forma racional, falo de outros seres que nos habitam e que geralmente fazemos pouco ou nenhum contato. Temos animais, velhos e crianças dentro de nós. Isso é muito profundo e tem a ver com as múltiplas configurações possíveis da consciência. A outra coisa, tão imprescindível quanto, é o que venho chamando de "transbordamento de humanidade", que diz respeito a uma capacidade necessária ao artista cênico em geral, que é de corporificar o coração, de fazer sua humanidade crescer e se derramar pelo corpo/voz, de saber fazer o seu olhar brilhar. E isso é algo trabalhável técnica e fisicamente. É concreto, passível de ser desenvolvido. Sem isso não tem palhaço porque não tem tridimensionalidade e não tem o que doar para os outros.

3 - O que é e qual é a lógica do seu palhaço?

Pergunta difícil porque até hoje venho tentando descobrir. O desenvolvimento da lógica do palhaço e esta percepção clara e consciente de como ele funciona é um trabalho para toda vida. Posso dizer algumas coisas, alguns traços, cores, características, imagens que se aproximam de meu funcionamento: lesma, masculina, meiga, grotesca, redonda, vermelho, árvore, dança... Mas isso é muito dinâmico, e está sempre em descoberta, é o trabalho de aprofundar a tridimensionalidade característica do ser humano. Quando passei pela minha iniciação tinham duas coisas muito claras, dois extremos que vivi no meu rito de passagem, que era a doçura e a brabeza. Hoje, passado 14 anos, venho encontrando milhões de nuances entre uma coisa e outra e com isso variações desses traços, e ainda combinações entre eles: há uma forma peculiar de ser sensual, há uma violência associada ao sarcasmo e inocência, há o amor ao extremo... Porque como seres humanos nunca somos uma coisa só. O importante é que conforme vamos aprofundando nossa lógica, multiplicamos nossa forma de se mover, aumentamos nosso raio de ação. O palhaço é um coração ligado à ação.

 4 – Quando, como e o que você faz para "entrar" no palhaço ou para ele "entrar" em você? E como é estar na pele dele, o que muda?

Meu rito de passagem foi algo tão forte e o nariz tinha tanta importância nessa abordagem que durante bastante tempo ficou muito marcante a passagem de mim para a palhaça associada ao colocar do nariz. Tanto que até hoje tenho imenso respeito por ele e prezo o momento de colocá-lo; geralmente toco os chakras do coração, garganta, testa e topo da cabeça com ele e faço uma oração pedindo que me seja permitido tocar os corações das pessoas, que eu possa naquele momento ser veículo de algo maior. O fato é que no início precisamos associar, simbolizar em alguma coisa, tornar marcante essa passagem de algum modo (que é mesmo pessoal), para que ela aconteça. No início batia sempre aquele medo: "será que meu palhaço vai vir?", "será que vou conseguir acessar meu estado?", mas quando colocava o nariz, esse gesto (e toda memória agregada a ele) trazia tudo rapidamente, sendo muito mais forte que minha racionalidade e receios. O que acontece é que com o tempo fica algo tão marcado na memória do corpo que não há a necessidade do nariz ou de rituais. Conhecemos e acessamos essa porta de entrada através da memória de pontos musculares e caminhos internos que combinados abrem esse acesso para esta outra consciência. O corpo já sabe o caminho e vai. E ao mesmo tempo que muda tudo, é como se fosse mesmo outro ser, inclusive muitas pessoas não me reconhecem; mas sinceramente, para mim não muda nada, sou só eu, sendo eu ao máximo e deixando os impulsos virarem corpo e me dançarem. Talvez possa afirmar que o que muda é a sensação de se sentir mais livre.